quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

"MORREU, AOS 105 ANOS, O SENHOR ALFREDO"

ALFREDO MATOS "CHERINA"

HISTÓRIA DE UMA VIDA CENTENÁRIA

Há uns anos atrás, no exterior do Café Teles, onde as cadeiras enchiam a esplanada (as esplanadas limpam-nos o mofo), atrevi-me a conversar com o nosso "campeão" de longevidade, ouvir-lhe o passado, conhecer-lhe a história. A história de Alfredo Matos (Alfredo, de seu nome, pois o padrinho de batismo foi Alfredo da Silva Neto, relojoeiro, pai do Dr. João Neto).


NO INTERIOR DO CAFÉ TELES NA COMPANHIA DO TAMBÉM SAUDOSO JOÃOZINHO TAIPA

Sobre o segredo de tantos anos vividos, 100, na altura (comemorados nesse dia 23 de Agosto de 2015), o ancião encolheu os ombros e deixou no ar o seu risinho maroto: «É a sina, mesmo sem a ler na palma das mãos; um dia de cada vez, é assim que eu penso».
As horas ocupava-as como mandava o tempo. Mas... sem fugir à rotina. Rotina que ele considerava interessante e nada aborrecida.
Muitos anos frequentador do "Popular" (propriedade de Américo "Caixa", junto ao Cruzeiro, até à "morte" do estabelecimento), "asilou" no Café Teles, onde passava assiduamente os olhos pelos jornais diários disponíveis e conferia os boletins do euromilhões e do totoloto, vício que não dispensava.


O ANTIGO E JÁ INEXISTENTE "CAFÉ POPULAR"

No Centro Cívico, punha a conversa em dia com os comparsas e à noitinha, às vinte e duas horas em ponto, era vê-lo, depois de saborear o seu cafézito - sempre na mesma mesa, caso contrário não se sentia bem -, despedir-se dos colegas e rumar a casa do filho, José Maria, onde, "teimosamente", só permanecia para comer e dormir.


CENTRO CÍVICO

Ás oito horas já estava cá fora. Sem falhar, missinha aos sábados e futebol, ao vivo, aos domingos, nem que chovesse, atrás do "seu" Sport Clube de Freamunde, e pela TV... com coração benfiquista.
Mirando-o atentamente, podia supor-se que nos acompanharia, com qualidade de vida, por mais alguns anos, o que viria a acontecer. Ouvia razoavelmente bem (não era preciso gritar-lhe aos ouvidos, uma, duas, três vezes); lia perfeitamente sem necessitar de usar óculos; caminhava, sem ajuda, com toda a ligeireza; respondia a tudo com uma lucidez surpreendente, portanto...
Sobre os "trabalhos" por que passou, não se perdeu em pormenores: «Sabe, naqueles tempos a vida não era como hoje». A infância de Alfredo Matos seria marcada pela instabilidade política, pelas tensões sociais, pela Grande Guerra, pelos surtos epidémicos, sobretudo da denominada gripe espanhola ou pneumónica de 1918-19, que dizimou milhares de portugueses, e da famigerada "Covid 19" que tanto nos aflige nos dias de hoje e que, curiosamente, não poupou esta fascinante personalidade; pelas dificuldades económicas do País. Foram anos de crise a todos os níveis.
«Tive o privilégio de aprender a ler e a escrever no ensino particular. Zezinho "da Casimira", o seu bisavô paterno,  foi o meu mestre. As aulas decorriam ao ar livre, na eira. Quando chovia, o abrigo e sala de estudo era o celeiro. Foi assim que concluí a terceira classe, nível suficiente na altura».


JOSÉ PINTO PEREIRA GOMES "ZEZINHO DA CASIMIRA"

Freamunde era uma terra de cariz essencialmente rural. Ganhava-se o pão trabalhando a terra. Os chefes de família tinham de suar as estopinhas para sustentar os seus. Para os meninos, uma infância de privações. Alfredo, bem cedo, logo após a comunhão solene, ao tempo do padre João da Cunha Lima, foi saber o quanto custava a vida.
«Repare, aos onze anos já era caixeiro, no Porto, numa tia que lá tinha. As oportunidades, aqui, eram poucas. Não demorei a servir em duas lojas de mercearia. Aquilo era outro "mundo", mas quer que lhe diga?! Não gostei lá muito e pensei: Onde me vim meter! Queria vencer por méritos próprios e não por empurrões familiares. "Enchi-me" e regressei a Freamunde. Incentivado, logo fui aprender solfejo com o Antonino Nogueira, ingressando passado uns tempos na Banda de Freamunde, como saxofonista barítono, depois clarinetista baixo, saxofonista alto, e por aí fora, acabando como prateiro.


EM "MISSÃO", NA BANDA



BANDA DE FREAMUNDE - ANOS 30

Dei por finda a missão de músico em 1993, após 62 anos (!) ao serviço da arte dos sons. A Direção da Banda prestou-me uma homenagem, no concerto comemorativo do 25 de Abril, decorria o ano de 1994.


HOMENAGEM A ALFREDO "CHERINA"

Mas como ia dizendo, e porque o dinheirito das funções ajudava mas não dava para muito, consegui ocupação como aprendiz de tamanqueiro, até aos 24 anos, na oficina de António Taipa Coelho de Brito, avô, entre outros, de Domingos e José Maria Gomes Taipa. Não tínhamos tarefa fácil. Trabalhava-se à peça (4 tostões por cada par de tamancos). Os salários eram uma "ridicularia".  Olhe, tive sorte num aspeto: fiquei livre da tropa. Dos 24 inspecionados só 6 ficaram apurados. Fui sempre fracote mas gostava que me vissem como um homem, pois era saudável. Alegre mas nunca estouvado. Como o serviço militar não me tinha atrapalhado, procurei alternativas e fui feliz; o Padre Castro aceitou-me na Fábrica Grande (Albino de Matos, Pereiras & Barros, Ldª), como pintor, aí permanecendo até à reforma. Era na altura em que se usava as "chipas" ou "solipas". Sapatos? era o que faltava! Só aos domingos e para ir à missa»


FÁBRICA GRANDE - ANOS 30 - TAMBÉM JÁ "FINADA"

O seu olhar brilhava, iluminava-se, cada vez que recordava o passado e relatava o presente.
Até que, por volta de 1935, apareceu uma rapariguinha, natural de Sobrosa mas a morar em Madões, local onde os pais fabricavam um terreno de cultivo.
Alfredo encantou-se pelos olhos de Gracinda (Dias Barbosa), namoro de respeito, claro está, sempre sob o olhar atento dos progenitores da menina, e daí ao casamento foram "só" três anos.
«Como pode perceber, foi um dia simples.  Depois da Igreja, passou-se para a boda tradicional em casa dos meus sogros, com alguns convidados à mistura. Não havia dinheiro para mais, pois então!».


ALFREDO "CHERINA AOS 26 ANOS

Alfredo, morava com a mãe no lugar da Ponte, mudando-se, após o nó, para a Boavista. Aqui, residiu, em casa arrendada, durante aproximadamente setenta anos. Enviuvou em 1980.
Do enlace resultou o nascimento de 5 filhos, dois já falecidos, Maximino e, muito recentemente, José Maria. Será que Alfredo "Cherina" perdera a conta às contas da família?
«Deixe lá ver: entre netos, bisnetos e trinetos, tenho 45, se não estou errado, com outros a caminho».
É perfeitamente natural que já lhe tenham cantado um sem número de vezes os parabéns. É ou não verdade?
«Se quer que lhe diga, dou mais importância agora do que há uns anos atrás. Este é, efetivamente, um dia especial. Sinto-me quase a cumprir um sonho. Mas nem quero imaginar que sou das pessoas mais idosas da terra. Vivo, ou tento viver, sempre, como já lhe tinha feito menção, um dia de cada vez. Ninguém fica "cá" eternamente, mas enquanto puder andar por aí sem estorvar muito...».
A festa do "centenário", com toda a pompa e circunstância, teve lugar num amplo espaço apropriado, a condizer com a efeméride, e reuniu dezenas de convivas, entre familiares e amigos.
ATÉ SEMPRE, SENHOR ALFREDO.