domingo, 22 de setembro de 2024

"VIAGEM PELO TEMPO , por Joaquim Pinto (9)


FREAMUNDE/PAÇOS - "DERBYS" ETERNOS (7)

ÉPOCA 68/69

Dez anos decorridos e o regresso dos grandes "derbys".
E para aguçar o apetite quis o destino que na 1ª ronda da competição se defrontassem, na "Cavada", Paços de Ferreira e Freamunde.
(A alteração de F.C. Vasco da Gama para F.C. Paços de Ferreira foi oficializada na A.F. Porto, em 8 de Novembro de 1961) 






Prometido estava um duelo mítico, pelo menos em termos emocionais.
Havia umas contas a ajustar de há uns anos a esta parte. É que os "vasquinhos", desde a sua fundação, tinham sempre somado derrotas nos confrontos com os seus vizinhos de Freamunde.
Constava-se, inclusive, que um prémio chorudo seria repartido, em caso de vitória, pelos jogadores do clube que então também equipava de azul e branco - tendências! - mas às riscas.
Até os "crentes" em acções de feitiçaria fizeram a sua aparição.
Houve - imagine-se! - quem tivesse encontrado maneira de levar uma galinha preta para o campo.
Era a única forma de afugentar o "mal" que pairava na "Cavada", mas... de nada valeu.
O recinto encontrava-se à pinha, de uma multidão frenética e barulhenta.
Aproximadamente 6.000, as pessoas que se preparavam para assistir ao ansiado desafio e que deixaram nos cofres a módica quantia de 57 contos ( o apuro final, depois de deduzidas todas as despesas, era distribuído em partes iguais pelas duas equipas).




Em redor, eram às centenas os aficionados pendurados nos taipais, indiferentes ao perigo que corriam.
Tudo fazia sentido.
14,50 horas - Sob arbitragem de Elísio Marques, do Porto, entraram as equipas, assim constituídas:

Paços de Ferreira: Vieira, Neto, Rola, Monteiro e António; Nata II e Coelho; Pimenta, Lessa, Canavarro e Salôa.
Treinador: Mário Morais

Paços de Ferreira:

Em cima: Vieira, Augusto, Rola, Nata II, Luís, Monteiro e Teixeira

Em baixo: Pimenta, Canavarro, Saloa, Lessa, José Augusto e Carlos Alberto

Fonte: Livro "F.C. Paços de Ferreira - 50 Anos de História"


Freamunde: Miguel, Ribeiro, Júlio "Guerra", Barbosa e Luís Afonso; Chile e Justino "Guerra"; João, Abel, Venâncio e Ernesto.
Treinador: Rola

 Freamunde:

Em cima:Miguel, Albino "Loreira", Barbosa, Eduardo Santos, Faria, Júlio "Guerra", Ribeiro e Dias

Em baixo: Humberto, Abel, Venâncio, Justino "Guerra", Ernesto e João

O jogo pecava pela ausência de bom futebol, ficando-se pela habitual intensidade rivalista.
Ao intervalo o Freamunde perdia por 1-0, golo de Nata II. Era a realidade nua e crua. Os "capões" estavam em desvantagem. Não podia ser! Raramente pôde, até então. Ninguém se perdoaria se deixasse perder o sonho, a tradição.
Identificados com as potencialidades do adversário, mas também das suas fragilidades, sobretudo psicológicas, os "azuis" de Freamunde reentraram bem mais animados, nunca deixando de viver o jogo com a alegria e o entusiasmo que lhe vinham do coração. De resto, havia o massagista, Zeca "Pequito", que, durante o descanso, distribuiu um cházinho tão quente, tão eficiente que triplicou as forças para o resto da peleja.
Em cada um dos rapazes uma nova alma surgiu.
João - sim, João, o irmão do Agostinho "Rita", lançado às feras, qual arma secreta, e que tão boa conta deu de si -, fazendo uso de raro oportunismo, colocou tudo como dantes.
O desafio continuava a decorrer num ambiente de enorme paixão.
Um espectáculo ao qual não faltava a componente emocional.
Mas, para que o dramatismo se estendesse ainda mais, o inevitável Abel - tinha cá uma predilecção para marcar golos ao Paços que nem queiram saber! Vão sabe-lo lá mais para a frente - resolveu dar a "estocada" que se adivinhava. Fatal.
Estava escrito, ia ser. No fim dos noventa minutos os rapazes do "Carvalhal" cantavam de novo vitória.




Venceu, como sempre, o Freamunde, que nem por o Paços ter perdido mal deixou de ganhar bem.

                                               XXX  

Nuvens acasteladas no ar. Mau presságio? O que teria acontecido?! No derradeiro jogo da primeira volta e que antecedia o sempre escaldante Freamunde/Paços de Ferreira, um dos últimos classificados, Rio Tinto, visitou o "Carvalhal" e venceu-nos por 1-0! Coisas da bola...lamentavam os mais conformados.
O opositor usou e abusou do pontapé para a frente e fé em Deus, dando azo a que os assistentes fossem contemplados no... "hei Rio Tinto". Os apanha bolas não tiveram mãos a medir. O "couro" só parava no campo da "vedora".
A verdade é que o adversário levou a água ao seu moinho e o resto são tretas!
Esquecido o infortúnio, a Vila engalanou-se para a recepção ao vizinho. O campo do "Carvalhal", como era de esperar, registou uma afluência fora do comum. Cerca de 4.500 pessoas ( não contando com os sócios, jovens e muitos "habilidosos que entravam pela "porta do cavalo"- a vida estava difícil e não havia dinheiro para o bilhete) deixaram nas mãos do contente tesoureiro a exorbitante quantia de 41 contos.



Como conseguiram entrar tantos milhares de pessoas, ainda hoje se está para saber!
Numa tarde cinzenta e triste a chuva, depois de várias ameaças, caiu incessantemente.
As poças e os regos de lama não foram suficientes para afastar novos, velhos, homens ou mulheres, do grande encontro.
O terreno estava numa lástima. O encontro de reservas, horas antes, entre as mesmas equipas, em nada ajudou.
De repente, nova e enorme bátega de água se abate sobre o campo.
Alagado, não vai poder deixar rolar a bola.
A possibilidade de adiamento do jogo é posta em cima da mesa, uma hora antes do início e ainda sem a presença do trio de arbitragem.
Porém, do outro lado, a resposta é seca: «o futebol não é para senhoras, por isso...joga-se» - vociferaram, com alguma arrogância, o presidente e treinador dos pacenses.
As faces de Fernando Leal, presidente da direcção do Freamunde, contorceram-se-lhe, as veias do pescoço parecia que lhe rebentavam.
Fernando Leal
Correram "dichotes" que alguém ligado ao "Vasco" tinha rondado, dias antes do encontro, a "noite" portuense - nas tais aparições mundanas - tentando "controlar" o indigitado árbitro. Falava-se em traiçoeira armadilha preparada no "métier".
Com a pulga atrás da orelha, Fernando Leal, sempre impulsivo, perseverante e decidido, resolvera, na Quarta Feira anterior ao desafio, meter os pés a caminho e junto da AFP "exigir" que o juiz a nomear para o embate fosse da maior competência e isenção, dizendo-lhes na cara... o que lhe ia na alma. Ao jeito de Fernando Leal.
Foi, pois, com alguma surpresa que os dirigentes pacenses viram surgir, no portão norte do "Carvalhal", o consagrado Armando Paraty.

Armando Paraty
Nervosos, voltaram de imediato com a palavra atrás, anuindo às pretensões iniciais: o adiamento do jogo.
Só que desta feita inverteram-se os papéis e é Fernando Leal, sempre firme nas suas decisões, quem "ordena", contundentemente, num sentimento de revolta e com a dureza de quem sentira o orgulho ferido, a realização do desafio.
«Os meus não são senhoras!... "Têm-nos" no sítio! Por isso...vamos embora que se faz tarde».
Era dos tais jogos que excitava e animava todo o apaixonado da bola.
O estado de espírito com que os dois conjuntos encararam a partida era absolutamente antagónico.
Os jovens de Freamunde, todos criados na "cantera", entravam já a ganhar em termos psicológicos.
A equipa da casa respirava confiança por todos os poros.
Os adeptos freamundenses acreditavam cegamente no seu grupo, mesmo sabendo que o adversário já não era completamente amador. Ostentava alguma "riqueza", dispondo nas suas fileiras de "estrelas" provenientes do F.C. Porto e do Boavista F.C.
No Freamunde havia espírito de equipa... o tal amor à camisola.
Para o jogo, os treinadores escalaram os seguintes "onzes":

Freamunde: Miguel, Ribeiro, Barbosa, Júlio "Guerra" e Luís Afonso; Justino "Guerra" e Eduardo Santos; Humberto, Abel, Venâncio e Ernesto.
Treinador: Rola

Freamunde:

Em cima:Miguel, Ribeiro, Júlio "Guerra", Barbosa, Chile, Albino "Malapeiro" e Rola (T)

Em baixo: Humberto, Fernando Viana, Venâncio, Augusto e Ernesto


Paços de Ferreira: Vieira, Reinaldo, Rola, Mário Morais e Monteiro; Coelho e Augusto; Lessa, Saloa, Canavarro e Pimenta.
Treinador/Jogador: Mário Morais

O encontro desenrolava-se a alta velocidade. Os "miúdos" de Rola estavam insuperáveis roçando os limites da perfeição.
Do outro lado, era o tudo por tudo dos "Vasquinhos" mas... uma vez mais, debalde.
A dureza dos homens de Morais era uma constante. O Freamunde, esse, jogava à bola que se fartava. A sinfonia era tal que a orquestra só desafinava com os ruídos provocados pelos pontapés nas canetas aos jogadores da casa.
Abel, Ernesto e Venâncio, aos 3, 27 e 84 minutos - tudo começou cedo, portanto - arrumaram de vez a questão.
O Freamunde venceu um opositor endinheirado e sobranceiro, debaixo dos aplausos de milhares de pessoas, rendidas à classe e ao talento de um colectivo que produziu futebol de muita qualidade.
Seria bruxedo?... Seria protecção divina?...
Muita energia, sobretudo... muita, muita alma, as "armas" que levaram o grupo a mais uma saborosa vitória. Afinal, a tradição ainda é o que era.




Impressionante o momento que seguiu ao fim do encontro.
Fernando Leal, que do jogo pouco viu, com o sangue azul e quente fervendo-lhe nas veias, cabelo encharcado, cara coberta de lama, olhos embaciados de emoção, estava beijoqueiro - que o diga Ernesto - e balbuciava qualquer coisa  como isto: «ganhámos... ganhámos. Já cá canta»
O seu coração, afinal, era grande.
Os jogadores com a alegria estampada no rosto, foram envolvidos pela multidão em delírio.


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