FREAMUNDE/PAÇOS - "DERBYS" ETERNOS (11)
ÉPOCA 73/74
3 de Fevereiro de 1974: 19ª jornada do campeonato da 3ª divisão nacional e última da primeira volta.
O Freamunde continuava a manter os primeiros (Régua, Paços de Ferreira e Avintes) à vista.
A verdadeira capacidade do grupo ia ser aferida na recepção ao vizinho. Os de Paços mantinham legítimas aspirações. Vislumbravam a subida de divisão.
O recinto do "Carvalhal" tornou-se pequeno para albergar tanta assistência.
A lotação estava esgotadíssima. Nem para o terceiro anel do monte d'Acheira havia "bilhetes".
Os espectadores mal se conseguiam mexer, havendo quem assistisse ao jogo quase - ou mesmo - ajoelhado já dentro do campo, junto ao gradeamento.
Amontoada por detrás da baliza do lado sul do "Carvalhal" encontrava-se a falange forasteira.
O ambiente, dentro e fora das quatro linhas, era de cortar à faca.
Ficha do jogo: ("onzes" e respectivas substituições)
FREAMUNDE: Miguel, Ribeiro, Júlio "Guerra", Domingos Faria e Albino; Martinho e Couto; Santana, Pinto, Abel e Ernesto.
Treinador/jogador: Santana
PAÇOS DE FERREIRA: Filipe I, Chaves, Filipe II, Rómulo e Freitas; Pimenta (Pinho) e Canhoto; Lima, Canavarro, Mascarenhas e Jesus (Malheiro).
Treinador: Daniel Barreto
As equipas eram apoiadas por 5.000 almas que testavam, sem parar, as cordas vocais.
Para Melo e Costa, repórter do "Jornal de Notícias" destacado para a cobertura do "derby", o que presenciava era uma "coisa inimaginável", um jogo mais do que "grande".
«Afinal o que é um "jogo grande"? Na sinonímia dos desportistas afectos ao futebol e na interpretação dos dicionaristas da modalidade, "jogo grande" é aquele que envolve a presença de dois "grandes". E "grandes" são o F.C. Porto, o S.L. Benfica, o Sporting Clube Portugal... Os outros jogos, os que confrontam outros clubes, mau grado transcendência de que eventualmente se possam revestir, são, quanto muito, «jogos importantes». E isto a nível de 1ª Divisão, que se descermos os degraus, os outros desafios de futebol só grangeiam certo rumor se catalogados de "decisivos"...
Estivemos em Freamunde. E não porque o jogo fosse decisivo. Mas também mais que importante. Ele valia, para as duas localidades vizinhas, pelo mais sensacional Porto/Benfica. Fosse qual fosse o encontro que se disputasse na área, com Cubillas ou com Eusébio, com Cruifft ou Pelé, ontem, não havia aborígene que arredasse pé do campo do "Carvalhal".
Aquilo não era Freamunde - mas o fim do mundo, em assistência, em entusiasmo, em excessos! Foi, ao longo destes 25 anos que levamos de jornalismo desportivo, a primeira vez que fomos destacados para comentar um jogo da III Divisão. E, com prazer e mágoa o afirmamos, o acontecimento que constituiu uma das mais belas experiências da nossa vida de crítico de futebol - e a tal ponto, que lamentamos, nesta caminhada de um quarto de século, não termos "perdido" mais tempo com jogos de futebol desta natureza.
O que interessava era ver o jogo. Tudo fazia sentido. Fonte: "Jornal de Notícias" |
Já não sabíamos o que era o futebol na sua exegese do amadorismo mais puro, já não sabíamos o que era o futebol espontâneo, livre dos complicados e por vezes insuportáveis espartilhos das tácticas, já não sabíamos o que era vinte e dois jogadores em permanente movimento - que as medidas do campo, além do mais, a isso os obrigavam, já não sabíamos o que era correr lágrimas de fogo por faces encandecidas, já não sabíamos o que era o peso do desalento, a euforia das falanges de apoio, o esganiçar das raparigas, a irrequietude do rapazio, aos magotes, o silencioso roer das unhas, o drapejar das bandeiras, aos molhos, como "mimosas" azuis e brancas, sob os ventos do jogo. Foi tal a nossa emoção, que até nos agradamos de ver - e perdoem-nos a franqueza -, como nos "bons velhos tempos", um guarda-chuva ferir o ar e um bom murro à portuguesa a fazer saltar os dentes.
Deu coisa boa estar ali em Freamunde! É que tivemos ocasião de registar, também, que não fora, apenas, um mergulho de encontro ao futebol empírico, quase elementar, no ambiente natural onde mais que as regras contam os impulsos e mais que o jogo contam as paixões... e as rivalidades. Podem por vezes (como aconteceu) pisar as raias do condenável - mas fazem-nas às escâncaras, de peito aberto, sofrendo ou fazendo sofrer as consequências.
Foi bom, é bom, porque é puro! E há ali todo um mundo a cultivar, a comparar, a guiar. É que daquelas 5 mil pessoas (!) que tomaram de assalto o acanhadíssimo recinto, uns milhares, largos, eram de jovens, rapazes e raparigas! E a quantidade de mulheres ali presentes! E o barulho, o pandemónio infernal que ali faziam!
Um rapagão, empunhando uma bandeira grande como coberta de cama de casal, entrou em campo para se postar à frente da equipa do Freamunde, que entrava em campo. Nunca a meus ouvidos reboou tal estampido! Bonzo, saí do recinto dos balneários à cata do "lugar da Imprensa"! Mas que diabo de ideia tão peregrina me havia de assaltar! O terreno conquistado é todo - e não chega - para o rectângulo de jogo e para amontoar e comprimir a multidão dos apaniguados! Como pode passar despercebido das autarquias locais tão extremo esforço, tamanha dedicação, tão veemente desejo de serem o porta-estandarte da localidade? Que é, que representa um subsídio de 10 mil escudos anuais para um clube de futebol, nos tempos de hoje? Que reconhecimento há para a vitalidade deste clube e desta terra, ninho ariçado de indústrias?
Bonzos pelo barulho e confundidos nestas cogitações, tratamos de arranjar alugar. O único - e esse por especial deferência dos dirigentes locais - foi-nos oferecido no "banco dos réus", ao lado do técnico-adjunto e dos suplentes do Freamunde»
Francisco Rodrigues, de Leiria, soprava para o início do desafio.
O Freamunde foi o primeiro a marcar, por Couto, através de um centro remate que traiu o guarda redes Filipe. Foi o delírio nas hostes locais.
O jogo estava apaladado por sentimentos mesquinhos que o futebol incendiava. Havia mesmo um certo azedume entre as claques que se alastrava durante a partida. As constantes vitórias dos "azuis" faziam saltitar "labaredas" de rivalidade por vezes a "roçar" o ódio. Jogo entre ambos resultava quase sempre em perigosos focos de conflituosidade, exigindo intervenções, algumas despropositadas, dos agentes da G.N.R., que abriam caminho à bastonada e coronhada, sem olhar a quem.
Os freamundenses iam atirando para o rectângulo de jogo o seu caloroso incitamento.
Do outro lado, surpreendentemente, surgiram "pétalas" de granito que provocaram algumas lesões. Canavarro que o diga.
Panfleto anónimo lançado dias após o jogo |
Atiçar o fogo era correr o risco de ser chamuscado pelas chamas. Para isso bastava que o vento virasse.
Insultos, por vezes baixos, sem qualificação, eram uma constante.
No entanto, esse ambiente de guerrilha não se espalhou pelo campo. Os atletas entregaram-se à luta de uma forma leal, completamente alheios aos desvarios que lá fora iam surgindo.
Já bem perto do final, Martinho colocava água na fervura ao introduzir o esférico na sua própria rede. Um toque infeliz após a marcação de um canto, que surpreendeu Miguel. Estava reposta a igualdade. A tempestade amainou. O vento, afinal, não virou.
Calaram-se as vozes e tudo voltou à normalidade.
O borrego, esse, continuava vivo.
O Paços, recheado de profissionais - os jogadores do Freamunde treinavam só duas vezes por semana ao cair da tarde...Muitos, apressados, compareciam ainda de fato macaco vestido -, contentou-se com um empate graças a... Martinho.
Vitória retumbante para os atletas pela aplicação e correcção postas na refrega e derrota, vergonhosa, para os adeptos - não vamos só culpar os "vasquinhos", não senhor... - pelo seu indigno comportamento.
Afinal, no futebol, desporto de paixões, somos todos "irracionais".
Cabeças esfriadas e tudo ficava sanado com uns copos na tasca d'Arminda.
Como um "gaio" ficou o jornalista Melo e Costa, que levou para contar «O que se passou naquele recinto foi qualquer coisa que transcende as nossas possibilidades descritivas. Que venham lá os intelectuais de trazer por casa, falar de futebol alienatório! Que coisa linda! Por exemplo, quando o Freamunde marcou, jogadores a chorar, amarrados num cacho, dirigentes aos saltos, povo a cantar, moças a correr, sirenes, bandeiras, abraços na mais caótica e maravilhosa confusão que nos foi dado ver!
Nenhum comentário:
Postar um comentário