quinta-feira, 26 de setembro de 2024

"VIAGEM PELO TEMPO", por Joaquim Pinto (11)


FREAMUNDE/PAÇOS - "DERBYS" ETERNOS (11)

ÉPOCA 73/74



3 de Fevereiro de 1974: 19ª jornada do campeonato da 3ª divisão nacional e última da primeira volta.
O Freamunde continuava a manter os primeiros  (Régua, Paços de Ferreira e Avintes) à vista.
A verdadeira capacidade do grupo ia ser aferida na recepção ao vizinho. Os de Paços mantinham legítimas aspirações. Vislumbravam a subida de divisão.
O recinto do "Carvalhal" tornou-se pequeno para albergar tanta assistência.
A lotação estava esgotadíssima. Nem para o terceiro anel do monte d'Acheira havia "bilhetes".
Os espectadores mal se conseguiam mexer, havendo quem assistisse ao jogo quase - ou mesmo - ajoelhado já dentro do campo, junto ao gradeamento.
Amontoada por detrás da baliza do lado sul do "Carvalhal" encontrava-se a falange forasteira.
O ambiente, dentro e fora das quatro linhas, era de cortar à faca.

Ficha do jogo: ("onzes" e respectivas substituições)

FREAMUNDE: Miguel, Ribeiro, Júlio "Guerra", Domingos Faria e Albino; Martinho e Couto; Santana, Pinto, Abel e Ernesto.
Treinador/jogador: Santana

PAÇOS DE FERREIRA: Filipe I, Chaves, Filipe II, Rómulo e Freitas; Pimenta (Pinho) e Canhoto; Lima, Canavarro, Mascarenhas e Jesus (Malheiro).
Treinador: Daniel Barreto

As equipas eram apoiadas por 5.000 almas que testavam, sem parar, as cordas vocais.
Para Melo e Costa, repórter  do "Jornal de Notícias" destacado para a cobertura do "derby", o que presenciava era uma "coisa inimaginável", um jogo mais do que "grande".
«Afinal o que é um "jogo grande"? Na sinonímia dos desportistas afectos ao futebol e na interpretação dos dicionaristas da modalidade, "jogo grande" é aquele que envolve a presença de dois "grandes". E "grandes" são o F.C. Porto, o S.L. Benfica, o Sporting Clube Portugal... Os outros jogos, os que confrontam outros clubes, mau grado transcendência de que eventualmente se possam revestir, são, quanto muito, «jogos importantes». E isto a nível de 1ª Divisão, que se descermos os degraus, os outros desafios de futebol só grangeiam certo rumor se catalogados de "decisivos"...
Estivemos em Freamunde. E não porque o jogo fosse decisivo. Mas também mais que importante. Ele valia, para as duas localidades vizinhas, pelo mais sensacional Porto/Benfica. Fosse qual fosse o encontro que se disputasse na área, com Cubillas ou com Eusébio, com Cruifft ou Pelé, ontem, não havia aborígene que arredasse pé do campo do "Carvalhal".
Aquilo não era Freamunde - mas o fim do mundo, em assistência, em entusiasmo, em excessos! Foi, ao longo destes 25 anos que levamos de jornalismo desportivo, a primeira vez que fomos destacados para comentar um jogo da III Divisão. E, com prazer e mágoa o afirmamos, o acontecimento que constituiu uma das mais belas experiências da nossa vida de crítico de futebol - e a tal ponto, que lamentamos, nesta caminhada de um quarto de século, não termos "perdido" mais tempo com jogos de futebol desta natureza.

O que interessava era ver o jogo. Tudo fazia sentido.
Fonte: "Jornal de Notícias"

Já não sabíamos o que era o futebol na sua exegese do amadorismo mais puro, já não sabíamos o que era o futebol espontâneo, livre dos complicados e por vezes insuportáveis espartilhos das tácticas, já não sabíamos o que era vinte e dois jogadores em permanente movimento - que as medidas do campo, além do mais, a isso os obrigavam, já não sabíamos o que era correr lágrimas de fogo por faces encandecidas, já não sabíamos o que era o peso do desalento, a euforia das falanges de apoio, o esganiçar das raparigas, a irrequietude do rapazio, aos magotes, o silencioso roer das unhas, o drapejar das bandeiras, aos molhos, como "mimosas" azuis e brancas, sob os ventos do jogo. Foi tal a nossa emoção, que até nos agradamos de ver - e perdoem-nos a franqueza -, como nos "bons velhos tempos", um guarda-chuva ferir o ar e um bom murro à portuguesa a fazer saltar os dentes. 



Deu coisa boa estar ali em Freamunde! É que tivemos ocasião de registar, também, que não fora, apenas, um mergulho de encontro ao futebol empírico, quase elementar, no ambiente natural onde mais que as regras contam os impulsos e mais que o jogo contam as paixões... e as rivalidades. Podem por vezes (como aconteceu) pisar as raias do condenável - mas fazem-nas às escâncaras, de peito aberto, sofrendo ou fazendo sofrer as consequências.
Foi bom, é bom, porque é puro! E há ali todo um mundo a cultivar, a comparar, a guiar. É que daquelas 5 mil pessoas (!) que tomaram de assalto o acanhadíssimo recinto, uns milhares, largos, eram de jovens, rapazes e raparigas! E a quantidade de mulheres ali presentes! E o barulho, o pandemónio infernal que ali faziam!
Um rapagão, empunhando uma bandeira grande como coberta de cama de casal, entrou em campo para se postar à frente da equipa do Freamunde, que entrava em campo. Nunca a meus ouvidos reboou tal estampido! Bonzo, saí do recinto dos balneários à cata do "lugar da Imprensa"! Mas que diabo de ideia tão peregrina me havia de assaltar! O terreno conquistado é todo - e não chega - para o rectângulo de jogo e para amontoar e comprimir a multidão dos apaniguados! Como pode passar despercebido das autarquias locais tão extremo esforço, tamanha dedicação, tão veemente desejo de serem o porta-estandarte da localidade? Que é, que representa um subsídio de 10 mil escudos anuais para um clube de futebol, nos tempos de hoje? Que reconhecimento há para a vitalidade deste clube e desta terra, ninho ariçado de indústrias?
Bonzos pelo barulho e confundidos nestas cogitações, tratamos de arranjar alugar. O único - e esse por especial deferência dos dirigentes locais - foi-nos oferecido no "banco dos réus", ao lado do técnico-adjunto e dos suplentes do Freamunde»
Francisco Rodrigues, de Leiria, soprava para o início do desafio.
O Freamunde foi o primeiro a marcar, por Couto, através de um centro remate que traiu o guarda redes Filipe. Foi o delírio nas hostes locais.


Festejos freamundenses após marcação do golo, por Couto

O jogo estava apaladado por sentimentos mesquinhos que o futebol incendiava. Havia mesmo um certo azedume entre as claques que se alastrava durante a partida. As constantes vitórias dos "azuis" faziam saltitar "labaredas" de rivalidade por vezes a "roçar" o ódio. Jogo entre ambos resultava quase sempre em perigosos focos de conflituosidade, exigindo intervenções, algumas despropositadas, dos agentes da G.N.R., que abriam caminho à bastonada e coronhada, sem olhar a quem.
Os freamundenses iam atirando para o rectângulo de jogo o seu caloroso incitamento.
Do outro lado, surpreendentemente, surgiram "pétalas" de granito que provocaram algumas lesões. Canavarro que o diga.

Panfleto anónimo lançado dias após o jogo

Atiçar o fogo era correr o risco de ser chamuscado pelas chamas. Para isso bastava que o vento virasse.
Insultos, por vezes baixos, sem qualificação, eram uma constante.
No entanto, esse ambiente de guerrilha não se espalhou pelo campo. Os atletas entregaram-se à luta de uma forma leal, completamente alheios aos desvarios que lá fora iam surgindo.







Já bem perto do final, Martinho colocava água na fervura ao introduzir o esférico na sua própria rede. Um toque infeliz após a marcação de um canto, que surpreendeu Miguel. Estava reposta a igualdade. A tempestade amainou. O vento, afinal, não virou.
Calaram-se as vozes e tudo voltou à normalidade.
O borrego, esse, continuava vivo.
O Paços, recheado de profissionais - os jogadores do Freamunde treinavam só duas vezes por semana ao cair da tarde...Muitos, apressados, compareciam ainda de fato macaco vestido -, contentou-se com um empate graças a... Martinho.
Vitória retumbante para os atletas pela aplicação e correcção  postas na refrega e derrota, vergonhosa, para os adeptos - não vamos só culpar os "vasquinhos", não senhor... - pelo seu indigno comportamento.
Afinal, no futebol, desporto de paixões, somos todos "irracionais".
Cabeças esfriadas e tudo ficava sanado com uns copos na tasca d'Arminda.
Como um "gaio" ficou o jornalista Melo e Costa, que levou para contar «O que se passou naquele recinto foi qualquer coisa que transcende as nossas possibilidades descritivas. Que venham lá os intelectuais de trazer por casa, falar de futebol alienatório! Que coisa linda! Por exemplo, quando o Freamunde marcou, jogadores a chorar, amarrados num cacho, dirigentes aos saltos, povo a cantar, moças a correr, sirenes, bandeiras, abraços na mais caótica e maravilhosa confusão que nos foi dado ver!

...Da autoria, creio, de Fernando Santos



XXX


30 de Junho de 1974. Derradeiro "embate" do campeonato, em Paços de Ferreira, perante uma assistência calculada em 15.000 espectadores - haverá algum jogo, nos tempos actuais, com excepção dos realizados nos terrenos dos denominados "grandes", presenciado por tanta gente? - e uma receita (imagine-se!) a rondar os duzentos contos. Um balúrdio.
Tudo servia para incentivar os atletas. Buzinas, pandeiretas, bandeiras, cartazes... O ambiente era de loucos. Até uma avioneta sobrevoou o campo, agora da "Mata Real" - era já uma saudade a "Cavada" - com dizeres nada abonatórios e que denotavam evidente preocupação de reacender velhas rivalidades. Alegados "chicos espertos" que faziam da guerra suja uma maneira de estar no futebol.
Em vão. O espectáculo foi mesmo uma festa. Ordeira, sem incidentes.
Todos se comportaram com extrema dignidade.
Debaixo de fortes aplausos as duas formações fizeram evoluir em campo os seguintes elementos:

Paços de Ferreira: Filipe I, Freitas, Filipe II, Chaves e Pinho; Dias e Canhoto; Pimenta, Canavarro (Carlos Alberto), Mascarenhas e Malheiro (Carlos Alves)
Treinador: Daniel Barreto


Em cima: Chaves, Filipe II, Filipe I, Dias, Freitas e Pinho
Em baixo: Pimenta, Malheiro, Mascarenhas, Canavarro e Canhoto

Freamunde: Miguel, Ribeiro, Júlio "Guerra", Domingos Faria e Luís Afonso; Justino "Guerra" e Martinho; Andrade, Santana, Abel (Pinto) e Ernesto.
Treinador/Jogador: Santana







Em cima: Miguel, Júlio "Guerra", Luís Afonso, Faria, Quim, João, Jacinto e Manuel.
Em baixo: Ribeiro, Santana, Justino "Guerra", Abel, Andrade, Pinto, Ernesto e Martinho.

A arbitragem foi confiada a Simões Júnior, de Coimbra.
As equipas apresentavam-se com sentimentos diametralmente opostos; de um lado o Paços de Ferreira desejoso de acabar com o feitiço" e tornar-se campeão - um empate já era suficiente -, do outro, o Freamunde, sem nada a perder mas... se mais não fosse, havia a honra e a dignidade para defender. Depois, era cedo para "sacrificar" o animal.
Os pacenses possuíam, como cabeças de cartaz, Canhoto, Mascarenhas e, sobretudo, Canavarro.
O Freamunde "servia-se" do contagioso espírito de grupo.


Equipas perfiladas

Os primeiros minutos foram de estudo mútuo. As equipas receavam-se. Os "maestros" Canhoto e Santana, duas velhas raposas, resolveram pegar na batuta e a música passou a ser outra.
Domingos Faria, implacável, não dava um palmo de terreno a Canavarro. Uma entrada pouco ortodoxa e aí tínhamos o artilheiro-mor no estaleiro.
Seria o Paços, no entanto, o primeiro a cantar de galo. Canhoto esgueirou-se pelo centro e aproveitou uma desatenção da defensiva "azul e branca" para abrir o activo.
Rejubilaram os pacenses, subindo ao ar  estrondoso foguetório. Ainda era cedo. Faltava saber quem iria apanhar as canas.
Os "capões", briosos, não estavam pelos ajustes. O "menino" Andrade, um dos mais inconformados, rompeu, rompeu, e pôs a cantarolar as suas gentes. Estava restabelecida a igualdade. Tudo voltava ao princípio.


...O Freamunde acabava de empatar, por Andrade. Nos efusivos festejos nota-se a presença de um jovem adepto do Freamunde que não resistiu à emoção e invadiu o campo para abraçar os seus "ídolos".

Para o Paços servia assim mas o Freamunde queria mais. A esperança continuava no peito.
O borrego podia dormir descansado que a degola ficaria para mais tarde, acreditava-se.

Miguel antecipa-se a Mascarenhas e afasta o perigo

O "galináceo" aveludava a pena.
Eram por demais evidentes os sinais de nervosismo nos adeptos locais, roendo as unhas, com a alma em sobressalto. Sofriam a bom sofrer. O fogueteiro tinha ido dar uma volta.
Os minutos avançavam prosseguindo a emoção, o entusiasmo, a vibração.
Ninguém arredava pé.
Ernesto, isolado - e só faltavam três minutinhos para acabar -, falha o que parece certo: o golo. Seria o fim dos pacenses.
Dá o "chelique" em algumas senhoras que não resistem à emoção do momento. Entram os maqueiros.
Quanto a golos, mais não houve. O jogo terminava assim. Com um empate.
Mas... o "feitiço" continuava. Ainda não tinha sido desta que os "vasquinhos" tinham conseguido derrotar os "vizinhos". E tanto queriam! Paciência! Há mais marés que marinheiros, dizia-se.
Os pacenses deram largas ao seu entusiasmo - não foi assim muito -, vitoriando os atletas pela subida automática à 2ª divisão nacional.
As manifestações seriam, entretanto, interrompidas pela chuva diluviana que caiu sobre o concelho.
S. Pedro, "primo" de Santa Luzia, pregou-lhes uma "partida". Não se faz!
Ai se o Ernesto tivesse aproveitado aquela oportunidade!...



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