terça-feira, 30 de junho de 2020

"SEBASTIANAS" - CAPÍTULO III







de novo festas do mártir ou sebastianas  





Já com o carismático Bispo D. António Ferreira Gomes, pensador ilustrado, no "governo" da Diocese do Porto, as Festas ressurgiram em 1954, de novo com a denominação "Festas do Mártir" ou "Sebastianas", pela acção do dinâmico empresário de panificação, Anselmo Ferreira Marques, acolitado pelos restantes membros da Comissão Executiva, pessoas de todos os estratos sociais: Hermínio Pinto Gomes da Silva, Joaquim Fernando de Sousa Ribeiro, João Manuel Monteiro Correia e Abílio Orlando Matos e Barros.



Anselmo Marques



Estavam, assim, ultrapassados os obstáculos que sempre consomem as energias de quem organiza as Festas, muito por obra, graça e perseverança destes entusiastas.
O testemunho foi passado a outros freamundenses, tantos outros, que ao longo de todo este tempo têm mantido a tradição com dignidade, fervor e bairrismo.

Aquela gente, que reunia no salão da Associação de Socorros Mútuos Freamundense, onde tudo (re)começou, estava escudada numa denominada Comissão de Honra, liderada pelo Dr. António Chaves - a "elite" desviou-se para aqui -, que teria, em situações de défice, a obrigatoriedade de cobrir os valores em causa. Creio que nunca foi necessário.

Organizou-se um programa a condizer e deu-se início ao peditório, apurando-se a quantia de 17 notas de mil. O custo total das festividades rondou os 33 contos.


Carrinhos de choque   Foto: Feira popular (Lisboa)


Surgiram, então, as primeiras "novidades": um "mundo" de diversões que emprestavam um colorido e excitação a todos os romeiros, desde o pequenote ao mais idoso: Carrinhos de choque; Carrossel; Pista de aviões; Cestinhas; Poço da morte; Ratinho da sorte; Matraquilhos; Barraquinhas de tiro..., quase tudo montado no largo adjacente à capela de Santo António e junto ao Cruzeiro.



Poço da morte - Foto: Jornal Ilustrado


Programas de variedades, a alegria do povo em amena convivência festiva, quase sempre com a participação de Ranchos folclóricos (ponto alto de vista cultural e da aproximação dos povos), alguns da "casa", ensaiados por gente com alma de artista; de freguesias circunvizinhas... de norte a sul do país... do estrangeiro.



"Rusga" do "Outeiro"  -  Arquivo pessoal de Nelson Lopes



Visitaram-nos durante anos a fio os agrupamentos mais conceituados no panorama etnográfico.

O Cortejo Alegórico e Luminoso, agora Marcha Alegórica, fazia-se anunciar por poderosos morteiros e pelas ensurdecedoras zabumbadas dos Zés P'reiras, acompanhados pela alegria, pelas danças, dos inúmeros gigantones e cabeçudos, ainda sem a participação dos grupos de samba com as «"abrasileiradas" meninas deliciosamente descascadas para deleite dos "apreciadores"», assim mesmo, como Fernando Santos ironicamente transcreveu numa das muitas crónicas enviadas para a "Gazeta".


Membro de Grupo de Samba
Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto



A Segunda-Feira foi o dia escolhido para o culminar, em apoteose, das Festas, que duravam desde Sábado.
Os carros, que desfilavam na marcha, eram patrocinados  pelas principais fábricas da Vila (Fábrica Grande, Fábrica do Calvário, Telme, Pinto de Moura, L. Menezes...), e tinham a orientação, até finais da década de cinquenta, de Leopoldo Pontes Saraiva, numa manifestação desinteressada de gosto e arte que tanto engrandeciam esta Terra. Leopoldo Pontes Saraiva, freamundense por adopção,  porque era natural de Vila do Conde, e para cá viera em meados da década de dez do século XX (ainda bem!), cá casara com Lucinda de Oliveira e cá seria sepultado.


Carro "O Adamastor" - 1956  Fonte: Diário do Norte



Tempos difíceis, pois a azáfama era grande e o ritmo não abrandava um minuto que fosse, do pôr do sol à meia noite. Por dificuldades no empréstimo dos atrelados, havia só um mês para a confecção dos carros. Os mesmos, já com mais gente a supervisionar, eram feitos, recuperados e reconvertidos na rua, em barracões abandonados, em quintais, onde quer que fosse. Ao relento, ao frio, à chuva... A paixão, o amor, o orgulho em ser-se freamundense, tudo suplantava.
A concentração, organização e saída da "marcha" fazia-se quase sempre da "Quinta do Pinheiro". Uma ou outra vez da "Fábrica Grande". Actualmente, e desde há muitos anos, da "Gandarela".
A Banda da Terra fechava o Cortejo, ainda não muito extenso - quatro ou cinco carros -, de permeio com o colorido e a animação das Associações Etnográficas e das "cegadas" do jocoso grupo de Figueiró - momentos deliciosos proporcionados pelo espírito de Luís Monteiro.


Cegada "Os Zúlús", pelo grupo de Figueiró 
Foto: Arquivo pessoal de Nelson Lopes










No pós 25 de Abril de 1974, sobretudo, no recinto da Praça do Mercado, que saudades!..., vedado a serapilheira porque as entradas eram pagas (o Bar da Cantina, onde nos deliciávamos com a sardinha assada, a broa, o pimento, o caldo verde e a tijelinha de verde tinto, já era explorado pelos festeiros), surgiram os grandes concertos musicais, principalmente no Domingo de Páscoa, forma encontrada para angariação de fundos.


Praça - "Bar da Cantina" 
 Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto



Recinto sempre prenhe de multidões eufóricas e entusiastas nos aplausos aos nomes mais sonantes do panorama artístico português.
Nos últimos anos, até Bandas estrangeiras se mostraram nas Sebastianas.


Pedro Barroso


Os "tempos" são outros, realidade incontornável, e hoje há mais sumptuosidade nas sedutoras e, por vezes, exóticas realizações, vividas com uma intensidade fora do comum; o multicolor fogo de artifício e piro-musical - que veio introduzir uma importante qualificação às festas - ; a Procissão, deslumbrante, com os andores "ricamente" ornamentados (um sonho, que arrasta um mar de gente pelas principais artérias urbanas), passando pela "Marcha", referência do cartaz, cheia de encanto e beleza, que enche as ruas de forasteiros, constituída por vários carros alegóricos, todos eles imaginados e construídos por jovens desta terra; mais dias de folia - a Sexta-Feira está a ganhar "pontos", a pegar de estaca, na sua dimensão profana, com a já tradicional "Noite de Bombos" onde centenas de zabumbeiro(a)s, completamente contagiado(a)s, mergulham a cidade com as suas batidas ensurdecedoras e por vezes, muitas vezes, descontroladas, até ao nascer do dia; eventos de cariz cultural e recreativo, onde se têm aliado Associações e Colectividades locais, uma forma de afirmação, envolvimento e dinâmica das nossas gentes, sobressaindo o "Concurso de Quadras"; mais dinheiro...
O orçamento foi de tal forma inflacionado que actualmente 500.000,00€ já não chegam, obrigando as comissões, que trabalham afincadamente doze meses a fio na preparação dos "grandes dias", a trabalhos redobrados, sem desfalecimentos, para que as "Sebastianas", festas de bairrismo e de cultura, mola aglutinadora da vontade e da paixão dos freamundenses, sua linguagem comum, não se apaguem na poeira do esquecimento.



Procissão   
Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto






Marcha 
Carro Alegórico 
 Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto  








Fogo de Artifício 
Foto de Flávio Sousa




As mulheres (mais de 400) mostraram como se faz...




Concerto das Bandas
 Apoteose final   "Oh! Freamunde/Oh! Festas Sebastianas...

Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto





Iluminação 
Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto




Esquecê-las? Como, se elas vivem em ansiedade premente na retina dos que já tiveram a felicidade de as gozar!? Impossível, teimosamente impossível - assim exaltava o saudoso professor Gil Aires.

Ou então, o Dr. João Neto
Por Ti lutamos
Por Ti trabalhamos
Só p'ra Te elevar

Durante anos e anos muito delas se escreveu, em prosa e em verso, pela pena de gente sabida e bairrista.
Respiguemos:

1954 - (...) Este Povo de Freamunde tem uma singularidade no seu modo de querer, que o leva a ser invejado e admirado ao mesmo tempo. Uma simples discussão ateia uma labareda de bairrismo que contagia, num ápice, uma massa estruturalmente galvanizada, una, sólida, simplesmente admirável.
Ninguém duvidará que as Sebastianas terão o seu lugar à parte, correndo parelhas no seio das melhores do Norte do País.

1957 - (...) É que estas festas que Freamunde generosamente te oferece, são produto de um trabalho insano, profícuo, árduo, inteiramente seu.
Vem. Cá te esperamos. Lembra-te da velha sabedoria das Nações: Pela alegria se conhece o povo!
Vem conhecer a alegria de Freamunde, para poderes penetrar na sua alma!...

1965 - (...) Vês este esforço ingente, este atrevimento de uma terra que a nada se furta para que haja "Festa" e que tudo faz para que ela te agrade? Tradição!...
Anda daí, pois, forasteiro amigo! Vem folgar, rir, praguejar, beber, cantar, esquecer porque a festa és tu e, sem ti, não pode haver tradição!...

1993 - (...) Mas a ti, Freamundense, que queres que digamos? A ti, que conheces o melhor lugar para ver a marcha; que sabes que há "caldo verde" na Praça; que o "fogo" é lançado da "Jóia" e que se vê e aplaude nas famosas escadinhas; que dás duas corridas atrás das "vacas de fogo" e, pela manhãzinha, pegas num balde e entras no "mel".
A ti, Freamundense, cumpre saber receber porque tu, como nós, és Freamunde. O teu coração bate com o nosso, em uníssono, num ritmo infernal para pulsar este sangue que nos corre nas veias... forte... puro... azul... Muito azul!

2002
Já foi do Mártir, outrora.
Festa da Vila, eu sei lá.
Sebastianas, agora...
Sempre a melhor, amanhã.

2004
O povo vai descansar.
E ainda mal se deitou,
Ouve a "alvorada" a lembrar
Que a festa não acabou.

Mas... há transformações que exigem reflexão. O cariz popular tende a esvair-se, não está de acordo com a tradição. O folclore quase já se foi. Apenas o "vemos" no Cortejo, a cantar "Oh Freamunde/Oh Festas Sebastianas/Para quem vos vê/Vós sois um espelho...". 
As "Sebastianas" têm outra cara, quase que direccionadas para a juventude que garante multidões. Os concertos de palco, as pistas de dança... Isso sim. Isso é que traz gente a Freamunde. 


Concerto de Ana Moura


Para o povo "antiquado" serve-se a missa solene, a procissão e as "pranchadas" das Filarmónicas.
Na evolução irreversível dos tempos, mudaram alguns hábitos: a cerveja e a caipirinha sucederam à laranjada e à "pinga"; as bifanas, o pão com chouriço e o porco no espeto condenaram à extinção o caldo verde e a sardinha assada. Restam as farturas, as pipocas, o algodão doce... Laivos de nostalgia.
Gastronomia regional!? Nada como dantes! Tinha-se de certas casas, as saudosas tasquinhas, de salas exíguas, sem grandes beneficiações mas agradáveis, de ambiente acolhedor e atendimento cortês (Elvirinhas, Ilídio "Jota", "28", Américo "Caixa", Abílio "da Leocádia", Viana, Arminda "da Couta", Ramiro...), uma óptima ideia que nos ficou de estimáveis repastos durante anos - as célebres rojoadas caseiras, as tripas à moda do Porto, cabrito assado no forno a lenha, servido na pingadeira... Depois lá vinha, da barraca em frente ao Cruzeiro, um saco de deliciosas farturas da Família Oliveira.
A lista de vinhos era a pipa de verde tinto que tingia os beiços.


Café e Adega Popular, de Américo "Caixa" 
Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto




Que bom continuarmos, mesmo aceitando e entendendo as "modernices", na "estrada" que sempre trilhamos. A estrada da tradição. Sempre viva... Não a queiramos morta.
É certo, pois, que o "profano", na sua cultura popular, não terá certamente entraves. Prosseguirá sempre com pujança. É o que se tem visto! E, já agora, o "sagrado", como forma religiosa, até onde irá? Será que ainda se festeja o "Mártir" por devoção?



Igreja Matriz de Freamunde 
Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto

domingo, 28 de junho de 2020

"SEBASTIANAS" - CAPÍTULO II






 o porquê de... "FESTAS DA VILA" 


Em 1943, surpreendentemente, a notícia, qual estrondo sísmico, abalou o espírito dos pacatos freamundenses; a Igreja, através do novo Bispo do Porto, D. Agostinho de Jesus e Sousa, transferido da Sé de Lamego para substituir o nosso "vizinho", natural de Boim-Lousada, D. António Augusto de Castro Meireles, deu orientações ao pároco local para que o religioso se "afastasse" do profano (bandas, arraial, bazares...). As Irmandades e Confrarias dependiam totalmente do Bispo, directamente ou por intermédio do pároco. «...Sabe-se muito bem que os povos vizinhos, por vezes pessoas da mesma aldeia, esperam por estes ajuntamentos nocturnos para resolverem os seus diferendos pela violência. Quem reflectir no que expusemos deverá concordar que as festas não podem, em caso algum, merecer simpatia e a aprovação dos que têm responsabilidades na direcção das consciências e dos interesses espirituais do povo». In "Agostinho de Jesus e Sousa, Pastoral sobre Festas, Op. Cit. 1937, P. 519 - 1943, P.8".

D. Agostinho de Jesus e Sousa



Desilusão total. Para alguns não era, porém, despropositado de todo o pensamento.
A decisão foi acatada e as festividades, nesse ano, não se realizaram.

Mas as gentes de Freamunde adoravam as suas Festas, por elas sentiam orgulho, pela sua realização eram capazes dos maiores sacrifícios, da mais desinteressada entrega, e reagiram energicamente. "Hostilizaram" o poder clerical e deram a "volta" à situação. As razões invocadas não foram consideradas suficientemente fortes, convincentes, de nada serviram os "decretos", e o "arraial", no seu espaço habitual, "ressuscitou" com todo o fulgor em 1944. Só por um ano a Igreja conseguiu "dissuadir" os festeiros dos seus propósitos. Sem manifestações, sem iniciativas e participação, é certo, da Igreja, "eclipsada" que foi na sua vertente religiosa.
Nos programas das, agora, "Festas da Vila", não constava a missa solene e também a procissão. Sequer o nome do Santo Sebastião.

E assim continuaram até 1947. Debilidades financeiras, com as consequências do pós-guerra, alguma indiferença, apatia cívica, e o desencanto pela falta do "religioso", arrefeceram o ânimo dos  "entusiastas", originando um hiato de alguns anos.


sexta-feira, 26 de junho de 2020

"SEBASTIANAS" - CAPÍTULO I









 sinopse 
 primórdios 

Hoje "Sebastianas", outrora "Festas do Mártir" ou "Festas da Vila", da sua origem pouco se sabe.

O Professor Manuel Vieira Dinis, numa das rubricas "História e Etnografia", publicadas na "Gazeta de Paços de Ferreira", faz menção a um dos mais enraizados cultos, S. Sebastião, adorado desde meados do século XIV.

«...É quase certo não haver paróquia concelhia em cuja matriz não figure uma imagem do martírio aplicado ao cristianíssimo S. Sebastião, advogado da "fome, peste e guerra". Sempre que os males rondavam e caíam sobre os povos, atingindo, por vezes, o gado e as culturas, a veneranda imagem cruzava então a freguesia em diligência piedosa.

Saía de seus lares o povo, penitenciando-se, com hinários e ladainhas, pregações e procissões de negro. Verdadeiros clamores dirigidos ao Céu, de profundo desespero.
Guiões coloridos, cruzes, andores com orago e imagens da maior devoção. De cada casa um representante; o bom conselho popular interpunha-se de aviso: - Quem em vida faltou a algum clamor de obrigação, teria de fazê-lo depois de morto.

Velhos manuscritos registam cercos a que não faltavam tocadores de viola e os respectivos foliões bailando na frente. Quando a caminhada era longa o povo prevenia-se com farnel e boa pinga.


Zés P'reiras


As procissões ao S. Sebastião, aí por meados do século XVIII, não deixavam de ter características especiais. Davam-se morteiros ao levantar do mastro, véspera e dia, armava-se a capela com damascos; havia também tambores, clarins e trompas, além da missa cantada, sermão e de tarde procissão.



 










Faziam-se "comezainas em hum Monte, pousavam-se indecentíssimamente os Andores no chão, enquanto se comia, e estalavam rizadas e galhofas; saía-se muito bêbado".
É claro que estes e outros aspectos de irreverência mereceram medidas proibitivas por parte das autoridades eclesiásticas». 

As romarias e as festas populares, aquelas onde encontramos as mais expressivas vivências de religiosidade - conforme descreveu Carlos Ferreira de Almeida em "Alto Minho" -, centravam-se sistematicamente em santuários, capelas ou ermidas e  não em igrejas paroquiais onde, aqui, o controlo era mais intenso e não eram possíveis tão grandes liberdades de festa, de ritos e de lúdico, até, por vezes, de erotismo.

Por outro lado, as capelas e os santuários, isolados, prestavam-se muito melhor que as paroquiais às vivências do romeiro.

As festas ao Mártir, em Freamunde, tiveram sempre - tanto quanto sabemos - como epicentro na sua vertente religiosa, a igreja matriz.




Anteriormente à construção da mesma, o culto seria praticado numa velha capelinha que, dizem alguns historiadores, teria existido em honra do Santo Sebastião e derrubada para posterior edificação da capela de S. Francisco, em meados do século XVIII.



Capela de S. Francisco



Socorrendo-nos de vários elementos de pesquisa, constatámos que depois de algumas hesitações ao longo da primeira metade do século XIX a festa ao Santíssimo libertou-se de certos preconceitos para concentrar a anterior vivência em comunhão com o profano. A invocação ao Santo deixou de ser uma realidade intrinsecamente ligada à vida religiosa.

Nem os documentos nem a tradição fixam no calendário a data exacta em que houve início à festa ao Mártir por excelência, com as características, com o aparato, que hoje se lhe conhecem.
Porém, há indícios que a "Regeneração" e consequente entrada na segunda metade do século XIX foi um voltar de página nas festividades a S. Sebastião.

A festa ao Mártir não correspondia, nem corresponde, à data litúrgica (A Igreja dedica a S. Sebastião o dia 20 de Janeiro de cada ano).
O facto destes festejos se efectuarem, em Freamunde (orago: Salvador), fora do dia atribuído ao Santo Mártir deve-se, tudo leva a crer, ao facto do Verão ser a época do ano mais propícia a... romarias.

Há um século, aproximadamente, eram também habituais os festejos a S. Sebastião noutras freguesias do concelho: Sanfins (orago: S. Pedro de Fins), Modelos (orago: S. Tiago), Arreigada (orago: S. Pedro), Carvalhosa (orago: S. Tiago) e Meixomil (orago: Salvador).

Este tipo de realizações eram, e continuam a ser, sem dúvida, testemunhos da cultura de um povo e inequívocas manifestações populares.
Havia mesmo uma certa tendência para consagrar uma por freguesia, como festa religiosa local.
Porém, nesta povoação, em décadas não muito distantes, e porque há documentação precisa que nos permite afirmá-lo,  chegaram a realizar-se, no decorrer do mesmo ano, treze(!) festejos, todos de carácter religioso com o profano à mistura.
É interessante, pois, apontar a grande propensão do freamundense para este tipo de eventos.
Dar a conhecê-los é prestar homenagem às suas origens sociais e culturais.

Freamunde, Terra, fez sempre das Festas ao Mártir o seu "ex-libris".

Sem data regular, só em 1 de Abril de 1906, numa sessão ordinária da Junta da Paróquia, Henrique de Vasconcelos foi portador de uma proposta, assinada por vários requerentes da freguesia, já apreciada em 19 de Novembro de 1905, sendo definitivamente aceite, como dia certo e determinado, o segundo Domingo do mês de Julho.




 a romaria e seus aspectos 

A romaria era da responsabilidade quase em exclusivo dos comissionados ou festeiros, gente da classe média alta, que, face às precárias condições de vida do "povo", estrato social iletrado e menos considerado, arcavam com o custo e o esforço no cumprimento dos contratos.




A "elite" freamundense





Numa época de grande conflitualidade (primeira década do século XX), o poder político pouco ou nada manipulou directamente estas festas. A comissão apenas tinha que entender-se com o Abade da freguesia, igualmente Presidente da Junta da Paróquia. O resto dizia respeito ao Administrador do Concelho.

Festa era sinónimo de movimento, convívio, amizade, prazer, bulício... Como tal, os romeiros deslocavam-se a pé de todas as freguesias circunvizinhas, por incontáveis caminhos de regos e pó. Que interessava! Para lá do alegre divertimento, as jovens rurais, donzelas casadoiras, faces afogueadas - queriam lá saber da devoção! -, cuidadosamente preparadas pela mãe, com os melhores adornos - e duas irmãs para evitar qualquer ciúme, levavam vestidos iguais -, dispunham-se em fila no adro do santuário, em lugares estratégicos, esperando com naturalidade a primeira tentativa dos seus admiradores.
Por vezes resistiam e, impassíveis, levavam tempo a arrastar atrás de si os pretendentes - vestiam quase sempre "quinzena" (colete e calça de pano preto), que alternavam a gentileza com a ironia. Mas lá surgia o namoro que redundava, na maior parte das vezes, em casamento. Outros tempos!

Realizações de grande implantação popular, as Festas do Mártir quase não necessitavam de acções objectivamente dirigidas à sua promoção, tão fortes eram os seus atractivos, o entusiasmo, difíceis de igualar, que quase naturalmente estimulavam e motivavam todos aqueles que directa ou indirectamente lhes davam continuidade.

O aproximar da festa, sempre precedida pelas novenas, era vivido com muita ansiedade, sobretudo pelos forasteiros, atraídos por um programa rico e pelo calor e hospitalidade dos freamundenses.
Alegria era coisa que não faltava para oferecer a quem nos visitava.

A principal rua, de S. Francisco ao Cruzeiro, toda em arcaria a balões venezianos, encontrava-se enfeitada com mastros, festões, bandeiras, galhardetes... Milhares de "lumes" - tijelinhas cheias de cebo porque no princípio do século XX se usava pouco a cera -, tornavam os espaços referidos, o largo da Igreja Matriz e a Praça do Mercado, vistosíssimos e encantadores.

Proprietários das residências senhoriais, repletas de familiares e amigos que visitavam Freamunde nestes dias festivos, adornavam-nas e iluminavam-nas caprichosamente durante as noites. As casas e muros eram branqueados com demão de cal.

As Festas eram, e são, necessárias também para unir e fortalecer as estruturas sociais da comunidade.


Vista geral do Cruzeiro a S. Francisco


O primeiro dia da festa abria, ao alvorecer, com salvas de 21 tiros e repique incessante de sinos que despertavam os freamundenses e os convidavam ao arraial.

Os Zés P'reiras,  agora acompanhados de gigantones e cabeçudos, que exprimiam felicidade, para espanto e regozijo dos freamundenses - a sua introdução nas festas e romarias portuguesas, directa ou indirectamente, foi feita através da região espanhola da Galiza (S. Tiago de Compostela), com a importação do costume, em 1893, para a romaria d'Agonia, em Viana do Castelo. Fora, assim, "selado" o surgimento de um dos números mais aguardados do programa.
Com as suas batidas ensurdecedoras, zabumbavam de porta em porta, horas a fio. Bombos, caixas e gaitas de fole emprestavam um colorido sonoro que atraía a miudagem de pé descalço, até à última rufada.


Zés P'reiras



A acreditada Banda de música local percorria a freguesia, ao som de melodiosos acordes do seu extenso repertório, deliciando os apreciadores até a noite aparecer.
Terminava a acalmia, ao romper d'alva, com a habitual salva de morteiros.



Banda de Freamunde



A dimensão religiosa da Festa englobava a missa solene e a procissão.

A Igreja, adornada com muitas plantas, flores e cortinados bem lançados, abria na manhã de Domingo para a eloquente missa, revestida de enorme magnificência, acompanhada a grande instrumental pela "cappella" da Banda de Freamunde, onde por vezes se interpretavam obras (Tantum Ergo, Avé Maria, Agnus Dei...) de renomados compositores (Badoni, Gounod, Bizet...), com proficiência e mestria, por distintos barítonos da Cidade Invicta.

No púlpito, o panegírico ao Santo era da responsabilidade de eminentes oradores sacros, quase sempre convidados (Augusto Campos Dinis, Abade de Caramos-Felgueiras; D. Clemente Ramos, do Porto; Abade de S. Lourenço das Pias; António Pereira de Castro, ilustre professor do Internato dos Carvalhos, Porto...). Mas ... o mais insigne, o mais eloquente, o mais credenciado pregador, sempre ouvido com admiração e respeito, era o "nosso" Padre Francisco Augusto Peixoto, de verbo fluído e dominador.


Padre Francisco Peixoto


Ao bater das 14,00 horas, dava entrada no arraial a Banda de Música convidada, escolhida entre as melhores da região, recebida com toda a fidalguia pela "Freamundense", troando várias girândolas de foguetes. 
Nos Coretos, as Bandas (anos houve em que foram contratadas quatro!) faziam ouvir-se alternadamente perante numerosos afectos da arte dos sons.

De permeio, em lugar apropriado, prosseguia a Quermesse (bazar de prendas), organizada por distinto grupo de senhoras da nossa principal elite. Uma das formas a que recorriam para angariação de dinheiro e que perdurou anos a fio.


Quermesse ou bazar de prendas junto ao "Coreto"



Contagiados, certos romeiros divertiam-se com as provas de ciclismo para amadores, os jogos tradicionais - roleta, bilhar, mastro de cocaque, corridas de sacos, tiro... 




Corrida de sacos



Porque a época era de Verão e o calor apertava, não faltava quem se encostasse a uma barraquita e tragasse uns valentes goles desse espirituoso néctar chamado vinho. Os crónicos devotos do deus Baco, sempre cumpridores da promessa. Para os de carteira mais fraca, água açucarada, o "refresco", bebida pelos sequiosos através do mesmo copo e retirada de cântaro forrado a cortiça. Não havia "mal" que lhes pegasse. As raparigas, essas, optavam pelo pirolito ou laranjada "Canadá-Dry", oferta dos namorados. Como complemento, uma mão cheia de tremoços com azeitonas, uma fatia de melancia ou as doçarias (cavacas), produto dos vendeiros.


Laranjada "Canadá Dry"



Ano após ano apresentavam-se diversas companhias de saltimbancos, para representações ao ar livre. Diversões que constituíam um mundo maravilhoso. De quando em vez, arrojadas ascensões de balões "fenianos", cheios de ar quente. O aeronauta, sentado numa espécie de trapézio, subia até uma altura de aproximadamente 800 metros, para deleite dos curiosos de narizes empinados e prontos a correr desenfreadamente seguindo o percurso do dirigível que caía quase sempre em campos de cultivo ou matas, pr'ós lados de Nevogilde.




Aeróstato



A imagem de marca das festividades acontecia a meio da tarde: a procissão, momento sentido, de forte carga emotiva, que com luzido acompanhamento saía da Igreja Matriz, subia a "Feira", atravessava a mítica Gandarela, entre alas imensas de um povo crente, até ao local de partida.

Convocavam-se cidadãos honrados para os distinguir com a tarefa de levar as varas do pálio e segurar as borlas dos deslumbrantes e bem enfeitados andores (5 ou 6 nessas épocas), de quem eram protectores. Só pegava à charola, corriam vozes noutros tempos, quem desse mais dinheiro. E a tradição deixa adivinhar que raro era o rapaz que não quisesse carregar o peso assombroso, maltratando os pés e os ombros, mesmo usando as "ganchas" numa das mãos, como ainda hoje se faz, peças que servem para manter o andor suspenso durante as paragens.

A "majestosa" procissão incorporava ainda diversos lanceiros, guiões, dezenas de "anjinhos" vestidos a preceito pela firma António Ribeiro & Filho, e depois pelo carismático herdeiro, César de Vilhena Ribeiro (também, mormente nas décadas de quarenta e cinquenta, se fizeram representar armadores da Póvoa, Guimarães, Amarante, Felgueiras...). Cruzes, Irmandades, Confrarias e Ordens desfilavam então numa hierarquia precisa.

Atrás do pálio, sob o qual era conduzido o Santo Lenho - o dinamismo do religioso popular foi, é e será sempre apetecível ao poder político -, a vereação municipal.

Não se pense, entretanto, que as relações entre as comissões, autarquia e o Pároco foram determinantes, sequer fundamentais para a realização das festividades. Não. Houve alguns receios a partir de 1910, com a implantação da República, a crescente laicização e as confusões que daí resultaram. A República era laica mas as gentes, principalmente as do Norte, tinham fé e alegria suficientes para conjugarem os "opostos". Havia comunhão de esforços, participação activa... Todos percebiam o espaço - para o social, para o lazer, para o religioso... - das Festas nas suas categorias ou dimensões. Havia a "força" da promessa a cumprir (no tempo em que se prometia e cumpria) e a graça, o contentamento, de um arraial popular em simultâneo. Mas que os "políticos" às vezes se serviam "delas", lá isso serviam. Ainda agora!




Procissão


As Festas, porém, é que tinham de fazer-se. Custasse o que custasse. Mesmo com os surtos da influenza, varíola, peste bubónica e epidemias de tifo e pneumónica que vitimaram milhares de pessoas... Com o encarecimento dos bens essenciais, em que o pão escasseava para a grande maioria da população... Só em 1908, consequência talvez do Regicídio, e 1914 sofreram interrupções. Neste último ano, Afonso Costa, líder do Partido Democrático no poder, proibiu todas as manifestações, fossem ou não de índole cristã, de alteração da ordem pública. Também em 1916, não houve arraial nocturno, "resquícios" da sangrenta revolta de 14 de Maio do ano anterior que provocou centenas de mortes.
E se avançarmos para a década de vinte, nem com a desvalorização da moeda, a recessão, o espectro da bancarrota, a Festa ao Mártir deixou de realizar-se.

Voltando à procissão,  na retaguarda das duas Bandas, dezenas e dezenas de fiéis, orando, numa absoluta manifestação de fé.
Ao longo do extenso percurso, nunca alterado nos tempos, não faltavam as colgaduras de damasco e linho pendentes das sacadas e peitoris nem as pétalas para atirar ou a verdura para embelezar e perfumar o chão. Devem-se a Leopoldo Pontes Saraiva, durante muitos anos, os maravilhosos tapetes de flores por si orientados nestas ocasiões. Trabalho minucioso e que requeria arte e paciência.


Leopoldo Pontes Saraiva



Já sol posto, era tempo de comer - para alguns, não para todos... - o apetecido carneiro com arroz de forno que sobrara do almoço, bem regado com um tintol da região, e retemperar forças para o que restava da romaria: o arraial nocturno, o número mais apetecido do programa, com iluminações à moda do Minho, as denominadas tijelinhas, ou "lumes", aos milhares, acesas e dispersas em lugares específicos, a cargo de "especialistas" como Constantino Lira (Felgueiras), Plácido Campos (Póvoa do Varzim), Bernardo Barreira (Guimarães), Manuel Silva Pereira (Lamego)...
Madrugada dentro, descantes populares, onde se cantava ao despique e se exercitava sobre certo tipo de poesia, e lançamento de lindos e variados balões (quem não se lembra, nas décadas de cinquenta, sessenta, setenta..., do contributo de Valentim Augusto Martins "Faneco"?!). 


Descantes populares



O certame das Bandas contratadas durava até ao cantar do galo, para regalo duma multidão de apreciadores.

Vistoso e profuso fogo de ar e preso - o chamado fogo de bonecos, hoje vulgarmente conhecido por "ferreirinhos" - era lançado por dois, três e, por vezes, quatro conhecidos pirotécnicos das redondezas: Melro, Maravilhas, Valbom (Gondomar), Pontes (Lustosa), Teles (Sobrão), Teixeira (Frazão)..., em acérrimas disputas.

O programa encerrava com a queima de "bravíssimas" vacas de fogo, verdadeira arte de pirotecnia, vinda do longínquo Oriente. "Vacas" de madeira puxadas por cordas e que iam lançando sobre o público bichas de rabiar. Esta tradição data, em Freamunde, de 1904. Antes, desde 1897, a emoção crescia com corridas de touros à vara larga, depois de recolhida a procissão. Espectáculo arriscado, ao que parece sem consequências de maior.


Vaca de fogo


A folia terminava, quase sempre, com as habituais zaragatas. Bordoada de criar bicho, com efeitos nefastos, e que obrigava as farmácias Barros e Matos a trabalhos redobrados, tantos eram os curativos. Só as forças de segurança requisitadas (Regedores e G.N.R.) punham cobro aos desacatos, levando sob prisão os que alteravam a ordem pública, os larápios que montavam arraiais atrás das carteiras e os incendiários de colmos e palheiros.

Analisado o período, até 1930 aproximadamente, dá para perceber que as Festas ao Mártir, já então consideradas umas das melhores do norte do país, não eram vazias de ideias.
E assim continuaram no pensamento do freamundense bairrista.

Com a constituição da Cooperativa Eléctrica, as ruas mais centrais da povoação e o exterior da Igreja Matriz passaram a ser iluminadas, à moda do Minho, com alguns milhares de lâmpadas a cor. O efeito tornou-se surpreendente atraindo muitos forasteiros à risonha e neófita "Vila" de Freamunde, a rebentar pelas costuras.

Mas não há bela sem senão. Em 1934, a mística que caracterizava este povo quase se esvaiu. Os comissionados, por razões desconhecidas, talvez desinteresse, não aceitaram o mandato para que foram nomeados, deixando as gentes de Freamunde preocupadas.

Eis então que se apresentou, fazendo corar de vergonha os "homens" , uma "Senhora d'armas" desta terra, a orgulhosa bairrista e opulenta capitalista Dª. Elvira Monteiro, a quem nunca faltou o empenho cívico, que tomou a seu cargo e a expensas próprias a realização das Festas ao Mártir.


Dª. Elvira Monteiro


E logo com uma surpresa no programa: pela primeira vez o povo teve a ocasião de presenciar momentos de verdadeiro folclore, oportunidade, inclusive, para dar ao pé com as danças e cantares das "Rendilheiras da Praça", de Vila do Conde.


Rancho "Rendilheiras da Praça", Vila do Conde



Num Portugal aparentemente despreocupado, indiferente à II Grande Guerra Mundial (1939/1945), como país neutro foi poupado pela máquina destruidora alemã, não escapando, porém, à fome que sucede a todos os conflitos, com o racionamento dos alimentos essenciais. Freamunde, Terra, não foi excepção. Muitas famílias viviam no seio da mais completa miséria. Eram inúmeros os indigentes.
Cônscios da crise, as Festas, essas, é que continuaram refulgentes. Podia lá ser o contrário! O tal "milagre" de dedicação à causa... Bairrismo!